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  1. Manifesto do Museu

Manifesto do Museu

Manifesto do Museu

Recentemente (2017) o Museu Nacional de História Natural, França, em parceria com a Editora Reliefs, publicou um manifesto em defesa da história natural com a questão contundente: que futuro sem natureza? O manifesto foi publicado em um pequeno livro de 94 páginas em versão bilingue, em francês e em inglês.

Os autores do manifesto, renomados pesquisadores franceses, explicam em nove tópicos curtos qual o papel da história natural nas sociedades do século XXI.

O Portal de Zoologia disponibiliza a tradução do Manifesto do Museu em português. A tradução foi realizada por Filipe Aléssio.

Apresentação

MANIFESTO DO MUSEU - QUE FUTURO SEM NATUREZA?

Este documento foi estabelecido pelo Comitê de história natural constituído em 2016-2017 de iniciativa de Bruno David, naturalista, especializado em paleontologia e em ciências da evolução, presidente do Museu Nacional de História Natural, e sob a presidência de Philippe Taquet, paleontólogo, antigo diretor do Museu e antigo presidente da Academia de Ciências, e compreendendo:

Luc Abbadie, professor de ecologia na Universidade Pierre et Marie Curie (UPMC), diretor do Instituto de Ecologia e Ciências Ambientais de Paris, presidente do Conselho cientifico do Museu.

Gilles Boeuf, biólogo, professor na UPMC e antigo presidente do Museu.

Allain Bougrain-Dubourg, ornitólogo, presidente da Liga para a proteção das aves, LPO(Ligue pour la protection des oiseaux)

Claudine Cohen, filósofa e historiadora, especialista em história da paleontologia, orientadora na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS)

Philippe Descola, antropólogo, professor no Collège de France e diretor do Laboratório de Antropologia Social (Collège de France/EHESS, CNRS)

Françoise Gaill, bióloga, coordenadora do comitê científico da plataforma “Oceano e Clima” e antiga diretora do Instituto de ecologia e ciências ambientais (INEE) do Centro Nacional da pesquisa científica (Centre national de la recherche scientifique, CNRS)

Jean Gayon, filósofo, historiador das ciências e epistemologia, professor na Universidade Paris-I, membro do Instituto universitário da França, antigo diretor do Instituto de história e de filosofia das ciências e técnicas

Thierry Hoquet, professo rem filosofia das ciências na Universidade de Nanterre

Philippe Janvier (coordenador), paleontólogo, diretor emérito de pesquisa no CNRS, membro da Academia de ciências

Yvon le Maho, ecofisiologista, diretor de pesquisa no CNRS e membro da Academia das ciências

Guillaume Lecointre, zoólogo, professor do Museu, conselheiro científico do presidente do Museu

Valérie Masson-Delmotte, paleoclimatologista, pesquisadora no Laboratório de Ciências do Clima e do Meio Ambiente do Comissariat à l’énergie atomique et aux énergies alternatives (CEA)

Armand de Ricqlés, paleontólogo, antigo titular da cátedra de biologia histórica e evolucionismo no Collège de France, antigo professor da universidade Paris-VII

Stéphanie Thiébault, arqueobotânico, diretora do INEE do CNRS

Frédérique Viard, bióloga, diretora de pesquisa no CNRS

Preâmbulo

No momento em que o presidente americano recentemente eleito decidiu da retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e em que as ciências são colocadas à prova por obscurantistas de todas as direções, a constatação é implacável: nós entramos em uma era de “pós-verdade” que estende suas ramificações em numerosos países e nos meios sociais mais diversos. Este enfraquecimento do discurso científico na opinião coincide com a emergência de um ceticismo global. Para derrubar a extensão destas abordagens relativistas e assim frear as tentações das suspeitas injustificadas em direção à ciência, a história natural torna-se um quadro precioso.

Disciplina de observação, a história natural ensina a respeitar os fatos, a rejeitar o dogmatismo. Ela é por isso uma escola de realismo e de humildade. Ela impõe ao “naturalista” de se apoiar sobre conhecimentos validados, chamados a serem bens comuns. Fundada sobre a racionalidade, ela deve contribuir a restabelecer a confiança do público em relação às mensagens científicas, confiança indispensável para que a democracia possa pensar o longo prazo, crucial, notadamente sobre as questões ambientais. A história natural contribui assim a construir os princípios éticos que fornecem as orientações para a conduta humana, individual e coletiva.

A história natural nos enraíza, humanos, no mundo natural e nos incita a nos pensar em seu seio, com ele, e não contra ele. É por isso que ela é combatida por grupos de pressão os mais conservadores. Compreender o que diz a história natural implica explicitar a laicidade tácita das ciências.

Diversas vezes no passado, a história natural apresentou um papel principal, contribuindo a forjar o olhar que as sociedades tinham sobre o mundo que as envolvia e a melhor se construir. Neste início de século XXI, é conveniente ser capaz de conhecer as escalas de tempo e de espaço que ultrapassam aquelas do nosso cotidiano e desde então, se interrogar sobre a utilidade pública da história natural em um mundo instável, as vezes sacudido por reinvindicações sombreadas de sectarismo e intolerância.

Os dois textos que se seguem, o primeiro sob a forma de uma curta declaração, o segundo sob a forma de um manifesto mais detalhado, tem por ambição esclarecer e explicitar estes argumentos. Eles foram redigidos por um grupo de pesquisadores, filósofos, sociólogos, de diferentes sensibilidades, presidido por Philippe Taquet, membro do instituto.

Declaração

A história natural, fonte de conhecimentos, observa e compara todos os componentes do mundo mineral, vegetal e animal, assim como a diversidade humana nas suas dimensões biológicas e sociais. Ela tem como papel identificar e conservar todos os objetos de referência constituindo o grande “dicionário da natureza”. Ela é doravante implicada no estudo de todos os níveis de organização da matéria, da Terra aos corpos celestes, dos minerais às rochas, de genomas às células, dos organismos aos ecossistemas. Ela utiliza para este fim as técnicas mais avançadas e mais performáticas.

A história natural permite de ultrapassar os limites do tempo e do espaço, de retraçar e de compreender a história da Terra e da vida, de inventariar a biodiversidade, de analisar a complexidade dos ecossistemas, de compreender a evolução do mundo vivo e de identificar o lugar do homem no planeta.

A história natural, por sua ação perseverante, produz um conhecimento racional e objetivo do mundo real. Ela ensina a nos apoiar em fatos científicos coletivamente validados e não sobre opiniões ou crenças. Ela educa os cidadãos e o público ao contexto teórico geral que é a evolução. Ciência de síntese, ela federa as disciplinas científicas em uma perspectiva temporal e histórica ampliada.

A história natural ocupa um lugar central na reflexão sobre as relações dos seres humanos com o mundo que os envolvem. Ela está no centro dos problemas atuais da sociedade e do desenvolvimento. Ela mostra o homem como um ator dinâmico das transformações do planeta. Ela se interessa particularmente a este patrimônio comum da humanidade que é a biodiversidade, mostrando os fundamentos de sua história, expondo os fatores de sua evolução. Ela alerta sobre a perda da diversidade natural, ela propõe os meios de serem colocados em prática para a sua necessária preservação. Ela cria assim uma dinâmica original entre o trabalho de campo, o laboratório de pesquisa e as coleções.

A história natural de hoje cria as passarelas entre a ciência e suas aplicações. Ela mostra os imensos potenciais que a biodiversidade oferece à pesquisa fundamental, para a medicina, a farmacologia, a agronomia; ela é também fonte de bio-inspiração e eco-inspiração. A história natural contribui para definir os princípios éticos que fornecem as orientações para a conduta humana e o futuro (devenir) de nossas sociedades. Ela instrui as decisões a tomar em toda independência e ela contribui para que a ciência se torne participativa e faça parte da cultura.

Sem a história natural, o homem não pode construir um futuro durável e equilibrado em um planeta com recursos limitados e submetido aos riscos climáticos.

Com a história natural, nós somos, como seres humanos, enraizados no mundo natural e provocados a pensar no seu seio, com ele, e não contra ele.

Nós conclamamos nossos eleitos e nossos dirigentes, atuais e futuros, a considerar a história natural e todos as questões intelectuais, sociais, culturais, econômicas, éticas e vitais, que ela engloba: elas são indispensáveis para pensar e construir o mundo de amanhã.

Manifesto

O lugar da história natural na sociedade europeia do século XXI e sua utilidade pública

Da Antiguidade aos dias atuais, a história natural é inicialmente o nome de uma metodologia de estudo do mundo natural, humanos incluídos. Até o século XVIII, o termo “história” é entendido no sentido antigo do gênero de conhecimento (historia: investigação) apropriado quando não podemos descrever e explicar as coisas por meio de enunciados universais – diríamos hoje por meio de leis. Do domínio tradicional da história natural destacam-se os minerais, as formações geológicas, o ar e os meteoros, os seres vivos, mas também os costumes e as línguas das populações humanas. Para todos estes objetos, a diversidade é a regra, de modo que seu estudo se baseia na descrição, o inventário e a classificação. Esta dimensão metodológica da história natural permanece atualmente; ela se impõe em toda parte onde o conhecimento deve se confrontar com a diversidade. A partir do século XVIII, entretanto, o termo “história” adquire seu significado moderno: são históricos os fenômenos que não podem ser compreendidos a não ser como fruto de uma evolução temporal única. Segundo este sentido moderno, a história natural tem como objeto todos os fenômenos terrestres, cósmicos, biológicos e humanos que exigem serem compreendidos na sua temporalidade e historicidade.

A história natural apoia-se sobre as conquistas das ciências nomológicas, destacando leis, como a física, a química, a biologia de laboratório, mas ela não se reduz do fato de sua constituinte histórica forte. Em realidade, toda ciência poderia e deveria sem dúvida integrar um aspecto de “história natural”.

No plano de seu método, a história natural não é uma ciência a parte. Ela representa uma dimensão comparativa provavelmente necessária de toda ciência particular e as federa desta forma em nome de uma “meta-ciência” da diversidade e da história dos objetos. Mas ela possui também uma vocação federativa mais concreta, a qual estimula múltiplas interações entre disciplinas. Ela não tem a priori limites: seu domínio inclui a história do Universo, a história da Terra e seus climas, a história da vida, e inclui também o mundo humano. A história natural tem assim vocação para interagir com as ciências humanas e sociais.

O humano não é apenas um objeto de estudo para a história natural. Ele se constitui hoje em um horizonte inevitável. Doravante, de fato, a história natural integra o estudo das relações entre este e o mundo não humano, vivo ou não. A história natural possui assim uma responsabilidade particular diante os desafios que a humanidade encontra hoje nas relações que ela entretém com o seu ambiente físico e vivo. Como prever a evolução destas relações? Como avaliar os efeitos das estratégias técnicas e políticas que nós estabelecemos em matéria de meio ambiente? O que deve ser preservado, e como? Certamente, não é dever da história natural de dizer qual deve ser o futuro das sociedades humanas e da humanidade. Mas ela deve exercer o papel cientifico, educativo e de perícia, tanto na escala local, como o impacto de uma realização técnica em um dado ambiente, como o do futuro global da nossa espécie e de seu habitat.

Compreender o mundo e sua história para melhor antecipar o futuro, conhecer os limites do domínio que o humano pode legitimamente reservar sem comprometer gravemente sua exploração aos diversos recursos naturais provenientes do mundo não humano é hoje o papel essencial da história natural. Mas esta abordagem não é uma visão isolada e unívoca. Ela implica em numerosas interações com outras formas da atividade humana que intervêm no desenvolvimento do seu conhecimento e da sua capacidade de prever a longo prazo: a história natural participa ao domínio da complexidade. O nascimento da história natural na Europa do Iluminismo é uma constatação histórica, mas ele impõe deveres em relação às outras concepções do mundo natural e sobretudo de suas relações com o ser humano, notadamente de os considerar em suas medidas justas e de integrar ou de adaptar algumas experiências. Certas culturas realizaram, bem antes da Europa Iluminista, as experiências de serviços recíprocos com os meios naturais, mas sem a abordagem racional e histórica de que aproveitamos . Não obstante, muitas destas experiências, consideradas a luz de nossa racionalidade ocidental, aparecem frutuosas e merecem sua integração à história natural. É por este motivo que o papel histórico da Europa na estruturação da história natural deve prolongar sua busca de universalidade, tanto integrando as conquistas duráveis do ser humano como lutando contra as interpretações irracionais da história e dos mecanismos do mundo.

Constituir e conservar um referencial

Uma das bases históricas da história natural, em paralelo à observação e à comparação de objetos, é a coleção, isto é, a constituição de referenciais de objetos ou de dados perenes sem os quais não é mais possível organizar um saber, de o aprofundar e de o transmitir. Fala-se frequentemente de ‘dicionário da natureza”, mas agora diríamos “disco rígido da natureza” que temos sempre medo de perder sem ter feito o backup. As coleções são os backups destes referenciais. Elas se inscrevem no tempo e no espaço, como os arquivos documentais conservam os vestígios da história das sociedades. É indispensável que os tomadores de decisão compreendam a importância de tornar perene desta função grandiosa de conservação. Isto se aplica igualmente às coleções vivas (jardins botânicos e zoológicos) e, em uma certa medida, às reservas naturais ou santuários ecológicos. Conservar é a garantia de poder retornar aos dados factuais e originais, e de poder os analisar a luz de novos conhecimentos e técnicas. Em um mundo onde as tecnologias de pesquisa evoluem rapidamente, como o acesso a dados de satélite, o sequenciamento de DNA, a datação absoluta, a espectrometria ou técnicas de imagem, é constantemente necessário retornar aos dados quando aparecem novos paradigmas e novos métodos de análise. Por exemplo, os progressos rápidos das técnicas de paleogenética (utilizando dados de sequenciamento de DNA antigo) dão uma importância capital aos espécimes de coleções de restos humanos antigos, mesmo muito fragmentados, para compreender as dinâmicas do povoamento do planeta.

Uma singularidade e um trunfo dos referenciais de objetos presentes nas coleções é a sua profundidade temporal. As coleções e os dados de observações associados (como os lugares e datas de coleta) podem, por exemplo, ser mobilizados para documentar as respostas dos seres vivos às mudanças ambientais que acompanharam o desenvolvimento industrial desde o século XIX.

Assim, todos os tipos de objeto de coleção (exsicatas de herbário, amostras de perfuração oceânica e de lagos, sequências de DNA ou tecidos conservados em nitrogênio líquido, fosseis, objetos etnográficos, meteoritos etc) são únicos e suscetíveis de serem estudados novamente, justificando plenamente, desta forma, a conservação escrupulosa das coleções materiais e imateriais de história natural. Além disso, estas coleções alimentam constantemente as exposições destinadas à educação do público, exercendo um papel fundamental no seu acesso à comparação e à compreensão da estrutura do mundo e do tempo de sua evolução em diferentes escalas de duração.

Contribuir ao conhecimento racional e coletivo do mundo real

A história natural é antes de tudo uma mola da ciência. Paralelamente às coleções materiais (espécimes, objetos) e informacionais (base de dados, digitalizações), que são grandes instrumentos de pesquisa, da mesma forma que os observatórios astronômicos, bandejas de bacteriologia ou aceleradores de partículas, a pesquisa em história natural passa pelo campo e o laboratório. Estes três componentes necessitam meios e grandes infraestruturas de pesquisa. A complexidade de percursos que vão do campo, da observação, ao laboratório, ou mesmo de coleções ao laboratório, não é compreendida nem do público nem dos tomadores de decisão. Guiado pelo recurso constante à comparação, o pesquisador naturalista descobre o caráter ou a função compartilhada entre vários organismos, decifrando um simples episódio de sua história, mas sugerindo as vezes uma aplicação biomédica fundamental ou trazendo uma solução de monitoramento para riscos epidemiológicos, como, por exemplo, a descoberta do transporte da bactéria do cólera por crustáceos planctônicos, que permitiu estabelecer uma rede de prevenção de epidemias monitorando por satélite os episódios de proliferação do plâncton e de propor desta forma soluções para limitar a infecção.

Se, como em toda descoberta científica, existe uma parte de acaso na descoberta de uma nova função ou de uma nova aplicação a partir de um organismo ou objeto relevando a história natural, este acaso feliz é quase sempre suscitado pela diversidade e o número de objetos observados e a pertinência das análises comparativas. Todavia, aí também, abordar a diversidade necessita do acesso ao campo e às coleções.

Criar uma ponte entre as escalas de tempo

A história natural desempenha um papel federativo de disciplinas frequentemente distantes por seus objetivos e métodos, mas que compartilham certos conceitos. Assimilar domínios tão diferentes como a epidemiologia das doenças infecciosas, a adaptação de organismos às mudanças climáticas ou o impacto de organismos geneticamente modificados sobre a biodiversidade selvagem, por exemplo, supõe integrar sua temporalidade para compreender plenamente os mecanismos. A compreensão das conexões (emboîtement) das escalas de tempo, os “traços do tempo”, fundamental em história natural, é de difícil concepção pelo público, para muitos tomadores de decisão e mesmo frequentemente para muitos pesquisadores de outras disciplinas. Neste sentido, a história natural pode trazer para outras disciplinas científicas um esclarecimento sobre a dimensão histórica e a complexidade dos processos que elas estudam.

A abordagem experimental é sem dúvida de grande valor para estudar os mecanismos de resposta a um pequeno número de fatores ou condições, mas sua extrapolação às condições naturais é delicada ou impõe observações in situ ao longo décadas. Coleções de história natural que abrigam vários milhões de espécimes coletadas desde dois séculos, ou resultantes de escavações paleontológicas, oferecem neste contexto a possibilidade de analisar traços genéticos, fenotípicos ou ecológicos em um longo tempo, até mesmo muito longo, e em associação com dados ambientais (notadamente climáticos). As medidas, os testes, os monitoramentos de alguns meses ou alguns anos são suficientes as vezes aos tomadores de decisão ou às mídias, mas não possuem significado a longo prazo, este de uma centena de milhares ou milhões de anos que moldou o mundo como ele é (tel qu’il est). É aí que os conhecimentos acumulados pela história natural sobre a evolução dos climas, dos ambientes, dos ecossistemas ou das vias de migração contribuem a estabelecer um julgamento racional. O tomador de decisão responsável da gestão de resíduos radioativos “de longa vida” (da ordem de milhões de anos) dispõem de conhecimentos científicos sobre a evolução dos climas ou sobre a erosão nesta escala, e pode então relativizar decisões informadas?

Se apropriar (s’emparer) das questões de sociedade

As sociedades humanas sempre foram confrontadas às suas próprias inovações com os mesmos medos, as mesmas reservas, ou as vezes os mesmos entusiasmos seguidos das mesmas desilusões. Estas reações foram frequentemente acompanhadas de justificativas irracionais devidas à ignorância da estrutura do mundo real ou à vontade de não reconhecer os fatos ou os riscos. Desde o começo do períodos industrial e a emergência de sociedades cada vez mais complexas, interconectadas, o ritmo destas inovações aumentou consideravelmente com consequências que é difícil antecipar ou de avaliar. Porque ela também é reflexão sobre a complexidade, a história natural é um dos meios de vislumbrar racionalmente suas consequências a curto ou médio prazo sobre as sociedades e a biodiversidade. Por exemplo, deve-se considerar como legitimo a biologia sintética no contexto da evolução biológica? Como julgar os méritos respectivos da agronomia intensiva e da agroecologia? Deve-se conservar a biodiversidade do ponto de vista do número de espécies, de populações ou de suas propriedades funcionais (certas espécies poderiam não ser indispensáveis, mesmo no seu próprio ecossistema)? As respostas podem certamente também passar pela tomada de consciência da vantagem econômica, que é uma forma humana da vantagem seletiva, e pode incentivar a pensar mais largamente mobilizando as ciências humanas e sociais. A história natural revela em que a abordagem unicamente econômica é apenas uma dimensão, entre muitas outras, dos problemas ligados à conservação dos espaços e das espécies.

No contexto educativo, muitos seres humanos negam ou ignoram a legitimidade científica da evolução biológica, a qual é, não obstante a razão de suas próprias existências. As respostas que a história natural podem trazer a estas questões passam evidentemente por um apoio a uma formação científica precoce integrando a biologia, as ciências da Terra, a aquisição de conhecimentos naturalistas e a iniciação à lógica da comparação.

Ancorar o homem na (en) natureza

O papel capital – e sem dúvida o mais difícil a preencher – da história natural é o de contribuir a tomada de consciência da ancoragem do homem na natureza, isto é, como espécie entre outras. A história natural não deve somente ancorar o homem na história dos seres vivos, mas também o inserir novamente nas dinâmicas naturais, considerando aquelas que estão ocorrendo e que participam da evolução. Ela deve pesar na reflexão sobre as relações humanos-natureza onde o ser humano pensa como fazendo sua própria evolução modificando ele mesmo o seu ambiente, criando assim condições que os obriga a tomar decisões. Deve-se cuidar para que estas decisões sejam fundamentadas. Sua fundamentação e sua legitimidade são retiradas de cenários do passado, do estado atual do mundo real e de previsões racionais. Mas não se trata apenas da história natural: esta fundamentação deve ser estabelecido em partes iguais com dados econômicos e sociais. Devemos aprender a gerenciar a complexidade. Para isto, o naturalista cidadão ou pesquisador deve garantir sua própria autonomia política afirmando sua independência, considerando as dimensões éticas, denunciando os estudos sob influência, privilegiando o financiamento público de pesquisa por instituições acadêmicas e órgãos de pesquisa.

Educar e criar passarelas entre ciências e aplicações

Hoje, a história natural tem o dever de contribuir para a educação de nossos concidadãos criando sinergias com o sistema escolar, com o duplo desafio, de uma parte, de apresentar e de ensinar (faire comprendre) a estrutura, a história e o funcionamento da natureza a públicos cada vez mais urbanos e, de outra parte, iniciar estes públicos à ideia de uma origem natural dos humanos.

Enraizar o ser humano na natureza nos engaja a distinguir os discursos de valores que colocam o ser humano acima da natureza, e os discursos de fatos que fazem do homem uma parte da natureza, o que implica iniciar nossos concidadãos aos raciocínios científicos que permitem descobrir o que emerge dos pensamentos criacionistas, obscurantistas, até mesmo racistas nos piores casos. Trata-se também de apresentar o ser humano de hoje como ator dinâmico, mas também como vítima das transformações da natureza que ele mesmo provocou. Isto implica também de educar o público ao quadro teórico geral da história natural, a evolução e a noção de longo prazo em diversas escalas. Este corpus de conhecimentos de base serão indispensáveis para o homem avaliar racionalmente o impacto das mudanças as quais ele assiste.

A história natural permite mostrar a importância da mina largamente inexplorada que é a biodiversidade em todos os seus níveis de organização, no nível molecular até os níveis de ecossistemas ou dos comportamentos. Numerosos são os exemplos de princípios ativos extraídos dos vegetais conhecidos por seus efeitos curativos e atualmente sintetizados. O mundo animal também está na origem de descobertas inesperadas, como a evidência da resistência ao câncer no rato-toupeira ou a produção de um antibiótico e antifúngico natural em pinguins igualmente ativo em agentes patogênicos para o ser humano. A história natural é também a fonte de numerosos procedimentos em bio-inspiração e eco-inspiração. Estas atividades se desenvolvem rapidamente, ao ponto que normas internacionais ISO são atualmente elaboradas para cobrir vários de seus aspectos. O Velcro, por exemplo, foi inspirado pela forma de como sementes de bardana se prendem nas malhas de um tecido. A estrutura da pele dos tubarões, que otimiza o hidrodinamismo, serviu para conceber novos revestimentos para cascos e novos tipos de roupas de mergulho. Enfim, a eco-inspiração permitiu aos arquitetos de conceber imóveis energeticamente econômicos se inspirando da estrutura de cupinzeiros. Entretanto, nesta busca de novos recursos, deve-se tomar cuidado para que a história não se torne uma faca de dois gumes. Por exemplo, no domínio da pesca, os conhecimentos naturalistas permitiram de otimizar os esforços da pesca, as vezes até a colocar em perigo os estoques, enquanto que os mesmos conhecimentos permitem estabelecer as quotas de pesca. A razão de ser da história natural no século XXI passa pela criação de passarelas visíveis e diretas entre a ciência e suas aplicações. Além daquelas citadas anteriormente, como a pesquisa de sustâncias naturais de interesse médico ou a bio-inspiração, uma das aplicações emblemáticas da história natural é a gestão dos espaços naturais. Convém prolongar a abrangência incluindo, além do mundo vivo, as testemunhas das culturas humanas e do mundo mineral. Isto implica, em permanência, a cada geração, a formação de uma rede de especialistas competentes da biodiversidade e da geodiversidade.

Alertar sobre a perda de diversidade natural

Todos os indicadores recentes mostram que, mais que as mudanças climáticas, a perda da diversidade natural, isto é o desaparecimento definitivo de populações ou espécies de seres vivos, de ecossistemas inteiros e espaços naturais remarcáveis, se acelera atualmente a um ritmo inquietante ao ponto do termo “antropoceno” ter sido forjado para designar este momento da história. Esta tendência atinge a própria espécie humana (perda da diversidade cultural), apesar de sua proliferação atual, e está ligada às modificações do ambiente as quais o ser humano foi ator para assegurar a sua sobrevivência. Talvez ainda seja possível de frear esta perda, mas isto implicará em um esforço importante de educação e de formação ao conhecimento desta diversidade graças a uma restauração da história natural.

A influência (rayonnement) desta disciplina na pesquisa teve uma história complexa e flutuações de acordo com a evolução dos paradigmas. Diz-se que foi “fixista” (o que não é mais), “exclusivamente descritiva” (a qual ela efetivamente ainda é), até mesmo “contemplativa” (o que é uma atitude respeitável, mas fora do campo científico). Contudo, estes ganhos são um indispensável apoio a sua inserção nos paradigmas da ciência de hoje. A história natural é uma janela sobre a evolução dos seres vivos. A elucidação progressiva a árvore filogenética dos seres vivos – sua “genealogia” – permite doravante tomar decisões sobre os grupos de plantas, de animais ou as áreas geográficas a proteger em prioridade, em função de seus papeis re-fundadores no futuro (“hot spots” da biodiversidade, áreas de endemismo). O papel chave da história natural no contexto atual impõe então entravar a perda de velocidade atestada em seu ensino e da pedagogia de campo (terrain) a 40 anos, do ensino básico elementar até os cursos universitários, abrangendo os cursos destinados ao ensino de zoologia, botânica, paleontologia, a antropologia, a microbiologia, etc. É importante que estas ciências ensinadas e praticadas não sejam apenas ciências de modelizações, mas permitam sempre um retorno à observação do real concreto.

A história natural: uma cultura?

Como é a muito tempo o caso de países do Norte, deve-se trabalhar para que no Brasil (França, no original) a ciência, em particular a história natural, faça parte da cultura. É urgente, no nosso país, expandir o espectro relativamente reduzido dos conhecimentos e das atividades humanas consideradas como “culturais”, principalmente as artes de diversão (d’agréments), pintura, música, teatro, cinema, e literatura. O valor cultural e estético das produções da indústria humana é tão desprezada como o é o conhecimento naturalista do mundo que nos envolve. É ainda mais surpreendente que as relações entre a história natural e diversas formas de atividade artística são profundas e antigas. A reconquista do cultural pela história natural deve evidentemente passar pelo apoio institucional inscrito em um tempo longo (dans la durée), mas ela passa também pela mobilização de naturalistas amadores, de ONGs, de sistemas participativos, do sistema escolar, e de ações inovadoras de difusão.

Esta dinâmica já engajada graças às mídias permanece tímida. A difusão dos ganhos da história natural deve agora passar por ferramentas mais modernas de comunicação, as redes sociais, mas com uma sólida garantia científica (talvez um “selo” entregue pelas instituições científicas). Algumas Iniciativas permitem também de atingir diretamente um grande público, através de conferências ou debates improvisados fora das instituições que ele não frequenta.

Enfim, é mais do que desejável que esta cultura científica ampliada ultrapasse também as portas das instituições onde são formadas nossas elites políticas e o tomadores de decisão.

Que futuro para a história natural?

Qual será a história natural em 2100? É muito provável que as pressões antrópicas aumentarão e que muitas espécies serão conhecidas apenas pelos espécimes de coleção. As questões que emergem hoje serão colocadas com mais acuidade: o que deve ser conservado? Deve-se conservar a qualquer preço? O que é preservar as espécies, as zonas naturais, face a uma humanidade em demanda crescente de espaços e de recursos?

Neste início de século, muitas sociedades humanas parecem já se entregar a um determinado desanimo diante às necessidades econômicas e as necessidades crescentes de matérias primas. O curto prazo se impõe infelizmente nas decisões para as quais uma outra visão do tempo é indispensável. Os espaços protegidos são pouco a pouco erodidos, re-categorizados, e a proteção de espécies em risco permanece frequentemente um desejo (voeu pieux) ou sob a responsabilidade de defensores corajosos. Esta dinâmica será invertida no final deste século? Talvez se um esforço considerável for realizado para a difusão de um conhecimento racional, científica, do funcionamento da natureza, mas também dos perigos que algumas atividades humanas pesam sobre ela. Sobre tudo, o controle racional e eticamente responsável dos limites quantitativos atribuídos a nossa própria espécie permanece a chave de um futuro desejável. É a este preço que poderemos eventualmente vislumbrar restaurar ao longo do século uma nova interação durável onde o ser humano, guardando os benefícios de suas próprias produções, e sem dúvida aumentando-as, saberá se reinserir na natureza de uma maneira menos conquistadora. Novas páginas poderão ser então acrescentadas na história natural que poderá se transformar em um “código civil natural”, um pacto de não-agressão, como a evolução produziu por necessidade em várias espécies de um ecossistema. No longo prazo, e mesmo depois de sua extinção, nossa espécie terá apesar de tudo modificado irreversivelmente os ecossistemas, que se recombinarão e continuarão a evoluir segundo as modalidades comuns aos seres vivos, sob climas diferentes e mesmo uma geografia diferente. O ser vivo continuará a ser confrontado às contingencias do mundo físico que ritmaram sua história desde a sua origem, sendo o homem diretamente concernido ou não. Se este fosse o caso, a história natural nos permitiria ao menos de compreender os mecanismos, de fazer um julgamento racional sobre suas consequências, de antecipá-las e acompanha-las.

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